quinta-feira, 1 de novembro de 2007

A experiência do meu Natal 2006....

A experiência do meu Natal de 2006 passado em Angola a acompanhar o Grupo
Missionário ONDJOYETU numa semana de missão no Gungo.

O Gungo é uma zona do interior de Angola, um pouco a sul do Sumbe (Kuanza Sul) rodeada de montanhas, mato e lavras com árvores de fruta (principalmente banana) e milho. O povo vive em pequenas aldeias ou comunas distantes umas das outras, ligadas entre si por uma picada estreita feita de pedras, buracos e lama com um acesso apenas possível a Jipes, motas e camiões IFA, ou a pé, que é como normalmente o povo se desloca. E foi precisamente neste fim do mundo de 50 Km de picada praticamente intransitável, que demorou 12 horas a percorrer, que eu e a equipa missionária Ondjoyetu (constituída pela Sónia, a Vera, a Catarina, o Pe. Víctor e o Pe. David) vivemos o nosso Natal de 2006.
Porque foi uma experiência única na minha vida que quero relembrar por mais vezes, vou tentar descrever a memória desses 5 dias.
O calor era sufocante e o Jipe do grupo sem ar condicionado, portanto janelas abertas para entrar vento (quente!) o que proporcionava também a entrada de mosquitos, aranhos ou outros insectos pequenos. Avisaram-me com antecedência que a viagem e a estadia por terras da Donga ia ser difícil e ter muitas privações, mas eu estava decidida a arriscar e além do mais ia estar com a minha filha que não via há uns meses.
Não posso por mais que queira e tente, descrever ao pormenor o que foram essas 12 horas de saltos, de Jipe quase virado, de cerca de 20 ou mais paragens com o Jipe encalhado ou enterrado, com alguns bons metros a andar a pé na picada, saltando por cima da lama, dos montes de formigas “Kissonda” ou outros bicharocos, e sem luz (apenas um foxe) quando caiu a noite e apenas nos guiava a luz do Jipe e a da Lua no céu. Vi uma séria de estrelas cadentes e um céu estrelado bem bonito no meio daquela escuridão!! Hoje, algum tempo depois, dou Graças a Deus por me ter permitido ver e viver esses momentos únicos sem nunca ter tido medo nem nos ter acontecido nada. Segundo soube depois, o local é muito povoado de cobras, sardões, macacos e em alguns locais ainda se encontram avisos de “Perigo de minas explosivas”!
Na Donga (que vai ser o centro da missão Ondjoyetu) e que fica no cimo de uma montanha rodeada de imensas montanhas verdejantes mais pequenas, existem 3 construções semi-desfeitas, deixadas do tempo colonial. Uma construção rectangular com 4 divisões, duas das quais funcionaram como quartos para dormirmos, uma pequena varanda estreita a toda a volta, partida em alguns sítios, com portas e janelas (que já foram colocadas pelos missionários, assim como o telhado em chapa) mas por onde entra à vontade não só o vento, como sapos, ratos, sardões, etc… Outra construção só com paredes, telhado e buracos nas portas e janelas, onde funciona a Igreja. E a outra construção, mais pequena, com duas divisões, uma onde funciona a cozinha e dispensa e a sala para as refeições com uma mesa e cadeiras.
As janelas desta divisão são de panos do Congo, dos que as mulheres usam em Angola, por acaso muito bonitos com o desenho de Nª Srª de Fátima, e presos com galhos de árvores, para não estarem sempre a voar. O quarto das meninas tem 2 beliches de ferro, daqueles das casernas da tropa com uma tábua em cada. Dormimos as 4 no mesmo quarto, eu e a Vera, a Sónia e a Catarina. Por cima da tábua colocamos uma esponja fininha a fazer de colchão. Ao lado do quarto existe um compartimento com pretensões a W.C. mas onde existe apenas um buraquito no chão. Fazemos aí o xixi durante a noite, e depois colocamos água em cima. Também nos lavamos e tomamos banho de balde nesta divisão, mas durante o dia temos que usar a “Latrina”. A “Latrina” foi uma surpresa degradante para mim. Quando vi aquele quadradito feito de canas e revestido de folhas de palmeira e outros arbustos, com um buraco no centro, para fazer as necessidades, separado do sítio onde dormíamos uns 500 Mts, no meio de mato, onde apenas foi aberto um caminhozito para passarmos, disse logo bem alto:”Eu…. ir ali!! nem pensar!!...” Mas isto foi só um arrufo de primeira impressão porque depois, que remédio tive eu!!... Não havia outro sítio, e não ia ficar de rabo ao ar em frente de toda a gente que por ali circulava. Para afastar o medo dos bicharocos, cada vez que ia à Latrina, dirigia-me para lá a cantar, abanava com uma cana a bater nos arbustos as paredes da Latrina e depois de ter ouvido os bicharocos, como pequenas sardaniscas a abandonar o local é que entrava e sempre a olhar à minha volta. Que medo que eu passei, que falta de higiene, que falta de tudo o que nos habituámos a possuir nas nossas casinhas. Nem dá para contar tudo ao pormenor, porque só entende bem, quem passa pela situação. O lavar a loiça, o acartar água, o poupar a água para tudo, enfim!!!..... As milhentas de coisas que nos põem a pensar: “Meu Deus, como somos preveligiados!!” E apesar de tudo isso…. Porque passamos a vida a queixar-nos?? Porque estamos tantas vezes tristes e chateados com coisas que são insignificantes perante a realidade deste povo?!...
Depois há o contacto com aquele povo do interior, um povo sofrido, habituado a fugir da guerra, a andar de um lado para o outro no meio do mato, e a ver morrer os seus familiares com doenças por não terem nem medicamentos, nem enfermeiros. E é nessa gente sofrida que nada tem, que encontro precisamente a vontade de dar, de partilhar e de ser útil aos outros. Para eles os missionários, nos quais eu estava incluida, seja por serem de outra cor, ou por saberem mais, serem mais inteligentes ou terem um modo de vida mais evoluido, são as pessoas a quem dedicam toda a atenção. Ouvem-nos com extrema atenção, embora a maior parte das vezes nem entendam bem o que dizemos. Fixam o olhar em todos os nossos gestos, fazem tudo por nós e para nós. Levam ou transportam as nossas cadeiras de um lado para o outro onde sejam precisas, fazem-nos as refeições, as mulheres deslocam-se ao rio descendo e subindo um monte, para nos trazerem água em bacias enormes que transportam à cabeça e às vezes com os filhos às costas. Doi-nos o coração ao ver tudo isto, mas não adianta reclamar. Eles sentem-se muito importantes com tudo o que fazem para nós.
E a importância que eles dão a pequenas coisas, daquelas que para nós chamamos lixo?? Lembro-me de em casa das missionárias se lavarem as latas de conservas vazias e guardarem num saco grande para levarem para os miudos do Gungo. São o seu brinquedo predilecto. Lembro-me ainda de ir pôr um saco com o nosso papel higiénico sujo num buraco que havia sido feito para o lixo e uma das meninas me dizer para ir pôr fogo ao saco, senão alguém iria despejar o saco e aproveitá-lo.
Mais uma dor de coração!! Um simples saco de plástico!! E nós com tantos em Portugal e mesmo em Luanda, que voam por todo o lado! É incrivel o valor que as mais pequenas coisas que nós nem ligamos, são de um valor inestimável para quem nada tem!! A minha vontade era dar-lhes tudo o que tinha trazido para ali(pois ainda ficaria com muito na cidade!) mas as missionárias tiraram-me o entusiasmo, dizendo que não ia adiantar muito porque as coisas não iam dar para todos( que eram muitos) e ia criar desavenças e invejas entre eles, pois todos iam querer qualquer coisa. Por exemplo, se eu desse algo a um miudo, os outros iriam todos correr atrás dele até lhe tirarem ou puxariam tanto para um e outro lado que acabavam por estragar e ninguém usufruiria. À sucapa mandei entrar para o nosso quarto uma das meninas (de 5 ou 6 anitos) que me pareceu das mais pobrezinhas pois tinha uma blusita toda esfarrapada e com enormes buracos. Abri a minha mala e procurei uma das minhas T-Shirts mais pequenas e vesti-lha. Era uma do Verão Foz - cor de laranja – que ficou muito bem à minha Teresa (como eu lhe passei a chamar), e que assim passou o dia de Natal toda bonitinha. Era muito meiga e envergonhada esta miuda e tinha um sorriso muito bonito. Durante a missa, dirigiu-me diversas vezes o seu olhar envergonhado, acompanhado de um sorriso cúmplice. Uma outra vez que fui ao Sumbe ter com a Vera e as outras missionárias, fomos a uma feira e resolvi comprar uma saia para a minha Teresa. Disse-me a Vera que ela gostou e eu comprovei em várias fotos tiradas posteriormente nas celebrações dos missionários, em que sempre a menina estava vestida com a simples roupa que eu lhe dei. Gostava de poder fazer isto a muitos mais, mas eles são tantos, que é impossível.

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